A prova testemunhal é meio probatório aceito no sistema jurídico brasileiro, especialmente em crimes de cunho sexual, onde provas materiais são quase que inexistentes na grande maioria dos casos.
No que diz respeito a crimes contra a dignidade sexual, normalmente cometidos na clandestinidade, a existência de provas materiais são raras, restando apenas a palavra da vítima.
Neste sentido, alguns problemas podem ser vislumbrados neste procedimento, como: a descrição dos fatos baseados nas lembranças da vítima; a revitimização da vítima ao tempo que que ela tem que reviver o fato em questão para esclarecer o ocorrido aos investigadores; a maior valorização da palavra da vítima em comparação aos demais envolvidos (acusado e testemunhas); a interpretação pessoal da vítima em relação ao ocorrido, independente do fato em si ou da intenção do investigado; o impacto gerado aos envolvidos pelo simples fato do conhecimento da possibilidade de existência deste fato.
Os delitos de cunho sexual podem ser provados por documentos, fotos, vídeos, laudos psicológicos, contudo não é comum a existência de tais materiais. Podem ser provados também por intermédio de prova testemunhal, o que também é raro neste tipo de delito, visto que normalmente são praticados clandestinamente (qui clam committit solent), até por sua natureza. Em casos mais graves, o fato pode ser constatado por meio de exame de corpo de delito (corpus delicti)
Em se tratando de crimes executados às ocultas, torna-se quase impossível a comprovação material, não sendo raras as vezes em que só existe a palavra da vítima contra a palavra do acusado, cabendo ao operador do Direito a valoração diferenciada das partes, levando em consideração suas respectivas confiabilidades, seu tipo de relacionamento prévio ao fato, as situações ocorridas antes do fato e as demais variáveis sociais e ambientais envolvidas no processo.
De acordo com George Berkeley, filósofo idealista irlandês do século XVIII, “uma coisa só existe na medida em que ela percebe ou é percebida”, ideia reforçada até certo ponto por John Locke, ao defender que “tudo o que sabemos é adquirido a partir da experiência”, e quando se trata de percepção e experiência, deve-se ter em mente que se trata de algo subjetivo e interpretativo.
É evidente o valor probatório das declarações do ofendido no crime de assédio sexual, considerando a desnecessidade de efetiva vantagem ou o favorecimento sexual, bastando a configuração do constrangimento, conforme caput do art. 216-A do Código Penal.
Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.
O enfoque está na figura da palavra da vítima, inserida em situações nas quais possui pesos diferentes de acordo com a interpretação do órgão julgador.
Outro fator a ser considerado nestes delitos é a inversão do ônus da prova, ou seja, a partir do momento em que a suposta vítima realiza a denúncia, é tarefa do denunciado provar que tal fato não procede, o que, de certo modo, traz uma insegurança jurídica sobre o princípio da presunção de inocência.
O Código de Processo Civil56 traz a seguinte definição sobre ônus da prova.
Art. 373. O ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. § 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído. § 2º A decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil. § 3º A distribuição diversa do ônus da prova também pode ocorrer por convenção das partes, salvo quando: I - recair sobre direito indisponível da parte; II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito. § 4º A convenção de que trata o § 3º pode ser celebrada antes ou durante o processo
Via de regra, cabe ao autor, àquele que afirma determinado ato, fato ou circunstância, a apresentação de provas sobre o alegado delito, por outro lado, cabe ao acusado a prova de eventuais causas excludentes de ilicitude, culpabilidade, tipicidade, circunstâncias atenuantes, minorantes e privilegiadoras.
A presunção da inocência teve seu marco inicial estabelecido pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão58 , em seu art. 9º:
Art. 9. todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário à guarda da sua pessoa, deverá ser severamente reprimido pela Lei.
O princípio da presunção de inocência foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto 678/92 (BRASIL, 1992), também presente no art. 5º, inciso LVII da Constituição (BRASIL, 1988) e no Decreto 4388/22 (BRASIL, 2002), que prevê que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Surge aqui a máxima “in dubio pro reo”, princípio fundamental do Direito Penal que prevê o benefício da dúvida em favor do réu. Em lado oposto, tem-se o “in dubio pro societate”, uma espécie de contrapeso ao princípio “in dubio pro reo”, impõe ao juiz um raciocínio de que, mesmo que não haja certeza, mas se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, ele deverá pronunciar o acusado.
Há estudo que defende que o princípio in dúbio pro societate não é compatível com o Estado Democrático de Direito, onde a dúvida não pode autorizar uma condenação e, com base na dúvida, manchar a dignidade da pessoa humana e ameaçar sua liberdade.
Salvo melhor juízo, não há nenhum dispositivo legal que autorize o chamado princípio in dúbio pro societate, sendo sua fundamentação a de que, na fase inicial do processo, "não seria razoável exigir que o Ministério Público descrevesse de forma minuciosa os atos atribuídos a cada um dos denunciados, sob pena de adentrar-se num cipoal fático". Arai afirma enfaticamente que o ônus da prova é do Estado e não do investigado, e que se resta dúvida é porque o Ministério Público não logrou êxito na acusação que formulou em sua denúncia, sob o aspecto da autoria e materialidade, não sendo admissível que sua falência funcional seja resolvida em desfavor do acusado.
Já outro autor afirma que não deve haver hierarquia entre as provas produzidas pela acusação e pela defesa, uma vez que é o juiz que irá verificar isso no momento de proferir sua decisão. Contudo, é notório que o depoimento da vítima tem maior relevância social e, de certa forma, influencia indiretamente na tomada de decisão.
Importante lembrar que a vítima, como regra geral, tem total interesse em ver o acusado condenado, o que justificaria a produção de declarações tendenciosas de sua parte.
A palavra da vítima exige análises complexas e aprofundadas. Há autores que defendem que a palavra da vítima é questionável, mas deve ser considerada quando da impossibilidade de apresentação de provas materiais ou testemunhais:
A palavra da vítima tem valor probatório relativo, devendo ser aceita com reservas. Contudo, nos crimes praticados às ocultas, sem a presença de testemunhas, como nos delitos contra a dignidade sexual, a palavra da vítima, desde que corroborada pelos demais elementos probatórios, deve ser aceita
Há ainda uma outra linha de autores que enfatizam que a palavra da vítima tem caráter extraordinário frente às outras provas:
Nos delitos contra os costumes, a palavra da ofendida avulta em importância [...]. Nessas condições, é muito evidente que suas declarações, apontando o autor do crime que lhe vitimou, assumem caráter extraordinário, frente às demais provas. Não seria razoável e nem comum que a pessoa com essas qualidades viesse a juízo cometer perjúrio, acusando um inocente de lhe haver constrangido à conjunção carnal ou a ato libidinoso outro qualquer. Por isso, sua palavra, enquanto não desacreditada por outros meios de prova, digamos, vale como bom elemento de convicção.
O acórdão (TJ-SP, 2017) 66 traz que:
Como é sabido, os crimes sexuais, via de regra, ocorrem em locais vedados a testemunhas, pois o autor, degenerado quando assim age, procura não se expor à execração, procurando assim evitar que seja descoberto. São condutas criminosas que ocorrem na clandestinidade e se são harmônicos aos relatos das vítimas, há que se crer no que narra. A jurisprudência a respeito do tema é remansosa [...]. Além disso, segundo julgados, o depoimento infantil tem valor probatório, principalmente quando a criança narra fato de simples percepção visual e de fácil compreensão, fazendo-o com pureza. E o convencimento aumenta quando ele é confortado pelo conjunto probatório. [...]
Contudo, de acordo com o senso comum, bem como a opinião pública, o entendimento atual da sociedade, baseada em tradições e costumes, aponta que em casos de denúncia de assédio sexual, o denunciado é, a priori, culpado, e este deve provar que não cometeu tal infração. E, muitas das vezes, independente da conclusão do processo, o acusado é taxado como culpado, principalmente em seu ambiente de trabalho e no ambiente onde o fato ocorreu, o que agrava o problema.
O Código de Processo Penal (CPP) traz, em seu art. 386, que na falta de provas suficientes, o réu seria absolvido, e com base neste artigo, teoricamente haveria possibilidade de absolvição do réu, uma vez que somente a palavra da vítima poderia ser considerada insuficiência de provas. Contudo, os Tribunais têm entendido pela condenação, baseando este entendimento no art. 155 do CPP68 , que defende a formação de convicção por parte do juiz formada por sua livre apreciação da prova.
É possível a comprovação deste entendimento na ementa do STJ69 :
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PALAVRA DA VÍTIMA. RELEVÂNCIA. ABSOLVIÇÃO OU DESCLASSIFICAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N. 7/STJ. INCIDÊNCIA. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. O Tribunal estadual, ao analisar os elementos de prova constantes nos autos, entendeu pela ratificação da decisão de primeira instância que condenou o ora agravante pelo crime de estupro de vulnerável. 2. A pretensão de desconstituir o julgado por suposta contrariedade à lei federal, pugnando pela absolvição ou readequação típica da conduta, não encontra amparo na via eleita, dada a necessidade de revolvimento do material fático-probatório, que esbarra no óbice da Súmula 7/STJ. 3. Este Sodalício há muito firmou jurisprudência no sentido de que, nos crimes contra a dignidade sexual, geralmente ocorridos na clandestinidade, a palavra da vítima adquire especial importância para o convencimento do magistrado acerca dos fatos. 4. Assim, a palavra da vítima mostra-se suficiente para amparar um decreto condenatório por delito contra a dignidade sexual, desde que harmônica e coerente com os demais elementos de prova carreados aos autos e não identificado, no caso concreto, o propósito de prejudicar o acusado com a falsa imputação de crime. 5. Agravo regimental improvido.
Nem sempre é fácil perceber quando existe um viés indutivo, seja por parte da vítima ou do investigador, visto ser difícil distinguir uma opinião de um fato, ou até mesmo o relato pode ter origem numa memória verdadeira ou em falsa memória.
Já houve casos em que o réu foi absolvido com a fundamentação de falsas memórias por parte da vítima, como foi o caso do TJ-RS71 em resposta a um recurso sobre o tema.
APELO MINISTERIAL. ESTÚPRO DE VULNERÁVEL. ABSOLVIÇÃO POR INSUFICIÊNCIA DA PROVA DA MATERIALIDADE DO DELITO. PROVIMENTO NEGADO. INDÍCIO DE FALSAS MEMÓRIAS. IN DUBIO PRO REO. DECISÃO QUE VAI MANTIDA POR SEUS FUNDAMENTOS. RECURSO DESPROVIDO.
Jurisprudência sobre o tema também pode ser consultada, como as seguintes ementas do STF.
CRIME CONTRA OS COSTUMES – VÍTIMA – PALAVRA. A palavra da vítima ganha importância em se tratando de crime contra os costumes, especialmente quando harmônica com outros dados coligidos no processo (STF, 2018).
HABEAS CORPUS – ADEQUAÇÃO. O fato de pronunciamento judicial desafiar, em tese, revisão criminal não obstaculiza a impetração. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR – PALAVRA DA VÍTIMA. Considerada a natureza dos crimes sexuais, deve ser conferido certo grau de relevância à declaração da vítima, ainda que menor de idade.
A experiência forense mostra a vulnerabilidade das provas produzidas pelo depoimento da vítima, visto estudos realizados na esfera da Psicologia Cognitiva referente à falibilidade da memória humana, afirmando que qualquer pessoa é passível de erro ao recordar fatos.
Herbert Marcuse, sociólogo e filósofo alemão pertencente à Escola de Frankfurt diz que “aquilo que é não pode ser verdadeiro”, no sentido de trazer a compreensão da natureza irracional de muito daquilo aceito como verdadeiro.
Para reforçar a ideia e complementar o raciocínio sobre este tópico, Protágoras, filósofo sofista pré-socrático da Grécia antiga, defendia que “muitas coisas impedem o conhecimento, incluindo a obscuridade do tema e a brevidade da vida humana”. Para Protágoras, todo argumento tem dois lados e ambos podem ser válidos.
A história e os conteúdos desenvolvidos pelos seus pensadores revelam a fragilidade de tratar os fatos e as possíveis verdades a respeito do mesmo.
Fonte: URIARTE, Luiz Ricardo. Assédio Sexual no Processo Administrativo Disciplinar: a problemática com base no Instituto Federal Catarinense. São Paulo: Dialética, 2024. ISBN 978-65-270-4670-7